Thursday

Por mais que se faça, o riso é uma coisa local. Uma coisa que nasce ao pé de nós e cá fica indiferente à globalização dos modelos. Num mundo perfeito riríamos todos das mesmas piadas, com a mesma intensidade. Não sendo o mundo perfeito cada um ri das suas próprias imperfeições. Isto deve querer dizer que num mundo perfeito ninguém riria de coisa alguma. Porque não haveria imperfeições de que rir. E se assim fosse o mundo perfeito não teria risos. Por consequência o mundo perfeito não poderia ser perfeito. Porque um mundo sem risos não pode ser um mundo perfeito.

Friday

Embora os cães não tenham culpa nenhuma, estou convencido que continuamos a viver num mundo cão. Nem pior nem melhor do que era antes, cão apenas como sempre. E o facto é que não me resigno. Claro que me podem perguntar o que faço então nessa minha forma de não resignação. E aí, como não tenho a virtude do marketing fácil, não seria capaz de me defender adequadamente. O meu método é fazer eu o que acho correcto e não passar a minha vida a exigi-lo aos outros. O que acho correcto, sei-o, não é necessariamente o mesmo que outros acham correcto. Baseio-me apenas na minha consciência e na informação que procuro e tento que me baste. E quando faço o que acho correcto, faço-o com a discrição possível. O meu propósito - porque me interessa um propósito - é dar algum sentido à minha existência. Ainda que um sentidozinho pequeno e relativo. E, porque tomei como meu modelo a ciência e a física, quero enquadrar a minha actuação em princípios com alguma ligação a este fenómeno pouco provável que é sermos matéria consciente. Dito assim, a haver algum propósito, ele terá de ser o de dar a continuidade possível à estrutura do acaso, beneficiando ao mesmo tempo dele e colaborando com os seus extremos. Por consequência o propósito teria que ser o de reforçar os pontos em que se manifesta a complexidade, dar continuidade à evolução e enquadrar os comportamentos para que se reduza a lei da selva. A introdução de consciência num sistema faz com que a evolução deixe de ter carácter aleatório. A tarefa civilizacional é eliminar a lei da selva.

Thursday

Às vezes digo que estou bem em qualquer lado com o mesmo sentimento com que poderia dizer que estou mal em qualquer lado. Aqui o bem e o mal estão de tal maneira fundidos que não tenho maneira de os isolar e esclarecer. Reconheço que é assim e não há análise ou preocupação que me faça pensar outra forma de olhar para as coisas. Por vezes, em certos momentos mais reflexivos, vejo esta perspectiva como uma desistência ou uma morte não só anunciada com também assumida. Outras vezes, felizmente mais frequentes, aparece-me como uma simples marca de lucidez, desagradável sem dúvida, mas lucidez pura e dura que não se deixa comover com os ditames da lei da felicidade universal. Não me ocorre ficar feliz com a dor, seja minha ou de outros. E se há sofrimento, ainda que distante, não sou capaz de o ignorar e achar que é mesmo assim e paciência. Para isso teria que ser pragmático, o que de forma alguma me apetece ser, na mesma dimensão em que o não consigo ser. É provável que a felicidade esteja na ignorância. Mas se assim é, e apesar da minha consciência de ignorante, isso parece fazer-me abominar ainda mais a ignorância e todos os sabichões que tiram partido da sua disseminação.

Wednesday

Amamos aqueles ao pé de quem não receamos ser fracos. É isso que os distingue dos que nos desafiam ou nos são indiferentes. E é por isso que necessitamos de um lugar de amor. Cristo, que não era rei de nada, intuiu esta dimensão do homem e quis criar um mundo paralelo onde a existência não fosse uma guerrilha. Não soube ver que a sua bela teoria não se destinava ao homem que existia mas à abstracção que ele fazia do homem. Os que vieram depois pegaram no que lhes interessava e espalharam pelo mundo um método mais subtil de submissão.

E o que cada um de nós menos precisa é de submissão. Mesmo os que parecem que precisam, os que se agacham à vista dos poderosos, querem outra coisa que não a submissão mas pensam que através dela podem chegar à liberdade.

Gostamos daqueles ao pé de quem podemos ser fracos impunemente. Aqueles ao pé de quem nos sentimos incomparáveis - porque imunes à comparação - e que por razões que não são nada razoáveis constituem o nosso espaço de amparo.

Tuesday

Ainda que harmonia seja utópica ou aborrecida, é sobre ela que falamos quando tentamos falar de alguma coisa.

Ainda que procuremos a harmonia para logo a seguir nos abandonarmos ao caos, é sobre ela que esperamos e projectamos.

Monday

Eu queria que nestes textos não se encontrassem emoções...

Sunday

A primeira ideia é tirar um retrato e colocá-lo ao alcance de toda a gente. Fica, para que conste, a informação total sobre o que se é. Parece inscrito que no texto nada sairá da estrita margem da verdade. O ego flui por entre as letras e divide-se na sua multiplicidade para que a imagem seja única. Essa é a intenção e a vontade. Acontece muitas vezes dar a informação que ninguém pede para que peçam a informação que ninguém dá. E lá no meio, discreta, a verdade. Equidistante dos vários enquadramentos, das várias perspectivas, dos diversos modelos.

Mas depois, depois de tolerar as indiferenças, há o apelo mórbido da mudança. Cada dia uma nova identidade. Uma dança de nomes e de significantes, modos de vida atenuados por pequenas adaptações ao real.

Saturday

Há momentos em que somos o outro. São momentos de glória. Mas há momentos em que somos ainda o outro que não é o outro. As meninges espremem-se e mesmo assim ninguém viu esse outro que não é o outro de que a custo ainda se lembram. São os momentos em que para os devidos efeitos não se é. De um ponto de vista moral só somos o que os outros disserem que somos e se não somos o suficiente para que digam alguma coisa então é porque não somos.

Suponho que é esse medo de não ser que leva a maioria a querer ser qualquer coisa, ainda que pouco ou nada recomendável. Por não haver nada menos recomendável do que não ser.

Há momentos em que somos o outro que não é o outro. Estamos do lado de lá da muralha e deixamos que isso seja uma marca mesmo que o objectivo seja não ter marca nem deixar marca na pacatez do caminho.

Vamos supor que eu era capaz de sair à rua e interessar-me pelo primeiro ser humano que o acaso me propusesse. Interessar-me haveria de querer dizer olhar para ele, falar com ele e ouvi-lo. Vamos supor que era isto que eu estava a pensar fazer para mim um momento de integração social. Vamos supor que eu considerava isto uma maneira de me relacionar e estar em comunhão, de me aproximar do outro que não é o outro que eu às vezes sou.

Este outro que a minha suposta suposição me propõe ser um enviado do acaso, sujeito portanto ao rigor do desinteresse, é tão abstracto como a minha imaginação. Porque em todo este acaso eu só estaria a ver a maneira de mostrar ao outro quem sou. E isso não tem interesse nenhum, nem para mim nem para o hipotético transeunte.

O acaso é outra coisa que para ser acaso não pode ser previsto nem na matéria pensante de estar à espera dele. Em tempos conheci uma pessoa, de quem gostei, que dizia ler na palavra transeunte a mais bela das palavras portuguesas. Lembro sempre disso quando a uso, quando me cruzo com ela nas minhas trajectórias lentas por trás da muralha.

Friday

Aos poucos vou-me convencendo que a minha reserva face aos circuitos mais mediatizados não é uma inibição mas uma consciência. Assim como o nosso corpo reage automaticamente ao perigo de uma cobra, a uma cara agressiva ou ao cheiro azedo de uma comida estragada, também pode reagir cautelosamente a outras formas de agressão ou a outros cheiros venenosos. O que o marketing faz é descondicionar ou condicionar de acordo com o que lhe convém.

A vida não vale grande coisa mas ceder às exigências dos vendedores da banha da cobra não me parece uma maneira de tornar mais valiosa a minha individualidade. E por aí não vejo como me podem afectar estando eu à defesa, como é próprio de quem vive na selva e partilha o espaço com predadores não identificados.

O que por vezes é complicado de defender é a recusa em ter mais quando já se percebeu que isso seria possível se houvesse um esforço maior. Neste modelo de sociedade que se tem estado a desenvolver, a falta de ambição é um pecado mortal e moral. O uso e abuso dos recursos faz parte da ordem natural das coisas e não há raciocínio que valha para afectar esse ponto de vista. Se não cumpro o meu dever de ambicionar o bem-estar que a posse de bens e de muito dinheiro promovem, não sou digno sequer do pouco que tenho.

Thursday

Uma pergunta honesta poderia ser: para quê mais palavras? E uma resposta honesta? Dizer que não se dão respostas honestas. Ou que não há perguntas honestas.

A honestidade pressupõe a verdade. Saber a verdade. É melhor não ir por esse caminho. As palavras andam por aí e temos que as usar porque, ao contrário do oxigénio, não se gastam. A mesma palavra pode ser usada vezes seguidas sem que alguém note que foi usada. Mesmo que seja continuamente repetida. No campo da física seriam bosões, as palavras.

Ainda ando à procura do meu dicionário de palavras vazias. Apenas porque queria não as usar. E com um dicionário poderia, sempre que tivesse dúvidas, excluir do meu texto ou discurso as palavras que lá estivessem. Não sei por que pudor não digo aqui explicitamente o que é o meu dicionário de palavras vazias. Como se receasse que isto fosse lido e me roubassem a ideia. É cómico pensar que a melhor maneira de esconder as coisas é colocá-las à vista de toda a gente. E colocar um texto no caos da internet é isso mesmo: há milhões de pessoas que podem ler o que escrevemos e no entanto não corremos esse risco.

Não me preocupa mas penso várias vezes no que provoca o desvio do olhar. Por vezes acontece isso mesmo, desviar o olhar para um lugar e não saber porquê. E este movimento cooperativo que faz um grupo olhar em harmonia para o mesmo lado de onde sopra o vento e excluir da sua atenção tudo o resto, definindo com súbita verdade o que é importante. Acontece-me muitas vezes olhar para um relógio e o números fazerem uma capicua. Os meus genes mais retrógrados tentam mostrar-me essas coincidências como significativas de algo mais. Se pensarmos bem a probabilidade de olhar para o relógio e ver uma capicua é muito baixa. Somando as ocorrências de 11:11 ou 21:12 ou 12:12 ou 04:40 etc dá 41/(24*60*60) dá 5 ocorrências em cada 10.000. Quer dizer que em cada dez mil vezes que eu olhasse para o relógio só teria 5 vezes com a sorte de ver uma capicua.

O que me vale é ter a ideia que há na minha visão uma mecanismo automático que tem um apetite especial pela simetria e pelo belo, e tal como me faz virar a cara para olhar um rosto belo que passa inesperadamente, também está atento a esses arranjos digitais que à revelia da minha consciência me solicitam o olhar.

Wednesday

Não é fácil recomeçar. Parece que os cálculos foram todos feitos para um determinado percurso e agora, iludido aquele, não restam forças para novas desilusões. Como se a trajectória dos sentimentos se medisse essencialmente pela bitola da normalidade, confundida com o padrão burguês. Um dia, com tempo, noutro espaço, hei-de repensar a questão da abstracção e de como ela desvia os caminhos para o sentido único da estatística.

A palavra recomeçar é triste. Envolve um conjunto de sinais que a determinam para lá do sentido mais regular: começar outra vez; um novo caminho em cima de uma memória; gestos que não serão os primeiros e terão o peso da repetição; tudo a parecer uma tentativa de esquecer; a pele, o corpo todo, a inteligência, dominados pela praga da comparação.

Recomeçar é uma coisa que vem depois de já se ter tentado, de já se ter estado próximo do lugar certo, ou na direcção que prometia levar ao tal lugar. Recomeçar está depois de falhar, depois de desistir, depois de tentar, depois de querer. Não é fácil recomeçar.

Ah, mas por outro lado, se abandonarmos a retórica do queixume, se olharmos para a vida a partir de dentro, livres da abstracção e integrados na correnteza dos factos, o recomeço aparece como o único padrão que dá alento a ser. Depois de recomeçar pode tornar-se claro que se poderá recomeçar sempre. Procede-se como se um novo começo fosse parte da natureza dos ciclos. Torna-se parte da solução e não problema, mesmo que angustie e pareça inútil.

Não é fácil recomeçar todas as vezes que se recomeça. Sob o desvio do olhar, como se não se visse, está na sombra outro começo promissor. Revela-se nos olhos a repetição da tentativa, o cansaço rebuscado envolto em lugares que agora são comuns. Passo a passo o recomeço pode tornar-se o método. Outro dia, outro começo, outra tentativa. Nova corrida, nova viagem, nova perda que não se ganha.

Não consigo sair dos caminho da abstracção. A escrita que é escrita e no momento em que é escrita, torna-se um caso prático e real. Mas todo o conteúdo, tudo aquilo sobre que se escreve ou se fala, esse referente anónimo ou nomeado pela insistência, é um objecto abstracto, retirado da existência para o campo da média e do desvio padrão. Ao dizer, mesmo querendo que o que digo seja tão factual quanto possível, e convencido que estou que não quero, pego em modelos do meu sonho ou do meu pesadelo e passo-os para a existência quase prática das palavras.

Recomeçar é uma abstracção. O começo, lá atrás quando se começou, era uma verdade, foi uma verdade, existiu. Agora, ao recomeçar, ao tentar recomeçar, ao recomeçar a tentar, falo do referente que já não é o que refiro mas as palavras que dizem deste recomeço a verdade, apenas porque houve um começo em que as palavras não eram ainda precisas.

Tuesday

Parece-me haver dois tipos de filosofias: as muito complicadas e as muito simples.

As complicadas são, como o próprio nome indica, muito difíceis de entender. Têm geralmente a ver com conceitos fundamentais muito específicos, encadeados e reencadeados uns nos outros, e precisam de dedicação, de muita atenção, de vontade e de treino para serem compreendidos, sentidos e usados. Referem a natureza profunda das coisas, do universo, da vida, do princípio, do fim, do sentido, da linguagem, da verdade, etc. No essencial reflectem a perplexidade de se ter organizado na Terra matéria que tem consciência e razão.

Os problemas filosóficos que encontram solução experimental, deixam de ser importantes para a filosofia e passam a chamar-se ciência. A ciência seria então a área da filosofia que trata de problemas em que a experiência corrobora a razão e vice-versa.

Que por vezes esta filosofia complexa pareça um jogo conceptual, cheio de artifícios mentais e truques de pensamento, não é de estranhar, uma vez que labora com os materiais da natureza humana, para quem o jogo é a peça chave que motiva ao movimento perpétuo: "a Vida é um jogo"; "Deus joga aos dados com o Universo"; "o jogo dos possíveis".

Por seu lado as filosofias simples são as que estão ligadas ao senso comum e à acumulação de sabedoria na experiência do tempo. E nessa perspectiva todo o homem nasce filósofo: todo o homem tem curiosidade, se interroga, se projecta no tempo, faz antecipação da realidade, sente a angústia de ser e procura dar consistência ao seu eu. A cristalização a que a rotina da vida obriga é que é responsável pelo abandono das perguntas e pelo cada vez maior apego a certezas que dêem segurança e amparo. Esse é, provavelmente, o mecanismo regular do crescimento. A cada dia que passa traz mais vantagens estar certo de algo indemonstrável, do que hesitante numa escolha sem garantias. Vale mais um pássaro na mão do que três a voar.

Há também, além destas, outras filosofias difíceis que se confundem com as primeiras: são as filosofias do ruído. São adoptadas pelos 'filósofos' da imagem que existiram em todas as épocas, atraídos pelo prestígio que parece rodear os que se afirmam pelo conhecimento. Estão convencidos que se usarem um grande número de palavras difíceis ditas de enfiada, com o rosto muito compenetrado, se não se pentearem e derem um ar tresloucado, ao mesmo tempo que divagam muito convictos, cheios de indemonstráveis citações e frases obscuras e impenetráveis, vão ter a admiração do povo e dos seus pares, ambos aflitos por receio de não estarem à altura de compreender tão elevada sumidade.

Às vezes não é fácil distinguir os primeiros dos últimos...

Monday

Gosto cada vez mais desta analogia entre os 'blogs' e as pessoas. Também aqui se mede a solidão como uma marca da falta de comunicação. Escrever sem ser lido ou sem saber que se é lido - o que vem a dar no mesmo - como aquele paradoxo de permanecer na ignorância mesmo em relação à quantidade de ignorância que se tem: saber que se é ignorante já é um passo grande na escala do conhecimento. Um dia, com tempo, e acima de tudo com disposição, gostaria de pensar esta maneira como a ficção e os preconceitos nos marcam na nossa ignorância relativa.

Esta manhã imaginava a terra invadida por uma espécie inteligente - realmente inteligente - suficientemente maternal para perceber as limitações dos humanos e tentar elucidá-los das suas dificuldades. É assustadora a ideia de colonização. Vinha isto a propósito de escrever sobre a assombrosa quantidade de gente que anda esforçadamente a tentar salvar-me. Um veradeiro corropio de desinteressados que parece não terem outro interesse senão levar a minha alma para o bom caminho.

Aqui nos 'blogs' somos mais do que nós. Um pouco à maneira do marinheiro que passava o Cabo das Tormentas e era mais do que ele. Os Lusíadas poderiam ser um bom fundamento para uma religião. Uma religião do livro. Com algum cuidado haveríamos de encontrar todas as regras que faltam para uma mística profunda e perfeita. Uma boa temática para 'posts' era: este livro dava uma religião. Mas não ando com grande disposição para pensar. Já percebi porque é que os livros são cada vez menos extensos: não há pachorra nem para escrever nem para ler em extensão. O que interessa é a espuma que consegue fazer agitando bastante. E não vale a pena dizer que isso é mau. É assim. Aceitemos a natureza como ela é, com a sua deriva continental por mares nunca dantes navegados.

Deriva é um bom nome. Tenho que o encostar à minha lista de erros. Encosta-te a mim. O Jorge Palma tem sorte porque as pessoas ouvem o que ele diz. E por isso talvez não esteja muito só. No disco há uma série de boas músicas, o que é extraordinário. O encosta-te a mim será o menor de todos, mas caiu bem nas estações de rádio e serve de lebre para vender o disco. Ouve-se bem o encosta-te a mim. Mas o que ele diz, as palavras que preenchem a música, são um quase puro disparate. Mas suponho que é suposto que enquanto nos embalamos na música não devemos perder tempo a pensar.

Sunday

Faz todo o sentido que te procure aqui em casa através dos teus vestígios. Alguns sinais são sinais que eu vejo como sinais, mesmo que não sejam sinais que aqui tenhas deixado. Por questões históricas esta casa não é a tua casa mas foi construída como se fosse para ser a casa que eu queria que te acolhesse. Que te acolhesse a ti mais do que me acolhe a mim. Por que eu tenho uma relação com as coisas que não se consegue enquadrar na posse. Não deixa de ser posse mas é uma relação dupla: as coisas são minhas mas eu não me sinto à vontade para dispor delas como é próprio de quem toma posse das coisas. Por isso a casa foi feita assim com uma forma que é a minha forma mas que não tinha que ser para eu dispor dela. Isto não é muito claro. Tenho algumas dificuldades em questões relacionadas com a propriedade. Também não gosto de coisas que são de todos. Mas não tenho arcaboiço para dizer que isto ou aquilo é meu e tirar daí alguma forma de prazer ou possibilidade. Pode ser uma simples questão de palavras.

Mas a casa, por força da sua génese, está recheada de vestígios de ti. Alguns são óbvios porque são marcas que eu instalei para que se vissem. Outros são acumulações de sentido que se foram fazendo com a tua presença ou com a tua hipótese de ausência. Vejo-os e tornaram-se familiares e não tenho outra coisa para fazer com eles senão mantê-los nos lugares de denúncia e sugestão.

É provável que uma ausência se esqueça melhor quando faltam os seus sinais. E seria essa a minha perspectiva se quisesse esquecer. Mas vai-se tornando claro que não quero substituir os teus sinais por outros: substituo-te a ti pelos teus sinais. E o tempo há-de passar assim, como passou sempre por todos esses séculos, indiferente e compenetrado da sua estranha missão. Mas não me interessa que o teu lugar volte a ser um lugar ocupado mesmo sabendo do remoto sentido que posso dar ao teu regresso, depois de ganhar consciência que os meus sinais não ficaram assim marcados em nenhum dos lugares por onde os teus passos hoje te encaminham.

Saturday

Se eu fosse honesto comigo próprio, talvez pudesse aceitar que este exercício, esta tentativa de debitar sobre a página, é uma manobra de sobrevivência, um golpe de asa perante um desespero disfarçado.

Existe um jogo difícil que fazemos todos os dias com a realidade. Queremos ver as coisas como elas são e quando sabemos que as limitações dos sentidos nos impedem de chegar a uma autêntica verdade, fazemos as correcções que julgamos necessárias para contornar as deficiências da observação. Toda a ciência é um jogo de gato e rato com a verdade. Por vezes é necessário armadilhar os caminhos para que os fenómenos se mostrem. Os caminhos não são lineares porque se o fossem teriam sido descobertos há muito. Mesmo as coisas que depois de conhecidas parece que sempre estiveram ali e não fomos capazes de vê-las, estiveram de facto tapadas por um impenetrável preconceito que impedia a visão do óbvio.

O óbvio é uma palavra perigosa. Geralmente usa-se para agredir, como muitas outras da mesma família.

O jogo que no dia-a-dia fazemos com a realidade não tem à sua disposição os poderosos recursos da ciência, e os truques para alcançar o conhecimento não são reprodutíveis quando o objecto de estudo é um ser não abstracto, único, dinâmico e irrepetível. Isso seria suficiente para que não se desse o erróneo nome de ciência aos estudos que não podem usar a metodologia científica. Mas, na falta de conseguir chegar à verdade, apetece chegar à aparência de verdade.

E isso acontece mesmo na relação entre duas pessoas.

Friday

Às vezes o que incomoda é a página em branco. Mas incomoda mais o coração em branco. Mesmo que o branco neste caso se queira ler negro, por falta de luz e de caminho. Tento procurar cantos escuros onde ficar face a face com o resto de sentimentos que ainda por aqui navega. Sem ruído, sem interferência da alegria cintilante do mundo. É bastante claro que não procuro nada construtivo. Assustam-me as coisas definitivas e a construção é, pelo menos em princípio, uma atitude que quer a permanência, a duração. Não falo porque não sei o que dizer. Não tenho razões nem argumentos, apenas sentimentos insustentáveis.

O caminho mais fácil é sentir-me doente. E o caminho menos doloroso é admitir que sou apenas mais um doente no meio de outros tantos. Mas nenhum caminho é consolador. Ainda assim vou seguindo pela vereda disponível tentando não dramatizar para além do suportável.

Num campo puramente hiperbólico poderia dizer que me aborrece não estar profundamente aborrecido. Como se o tempo e as experiências da vida me tivessem reduzido a capacidade de sentir a um ponto de semi-dormência, em que já não sou um líquido e ainda não sou um sólido. Incomoda-me não estar a sentir-me tão miseravelmente mal como me parece que deveria estar a sentir. E incomoda-me estar a sentir este incómodo incontornável, como se afinal eu só não sentisse todo o mal que sinto por não ser capaz de sentir exactamente o que sinto.

E tudo isto não passaria de uma incómoda página em branco se não se desse o caso de eu imaginar a minha saída do outro lado, esse outro lado onde ficou a minha parte boa, como uma desistência do pouco que tinha. Porque agora, enquanto ando por aqui a percorrer as linhas com letras ocasionais, percebo que aquela foi a derradeira oportunidade, mais não seja porque não tenho nem energia nem liberdade para sequer pensar em tentar de novo.