Tento perceber que coisa é essa a que chamam amor com letra grande, se lhe tirar todos os enfeites que o comércio e a indústria souberam propagandear para bem dos nossos corações. Mera reflexão sem coisa de científico ou pretensão filosófica. Se alguma coisa me enche de curiosidade são os mecanismos a que o poder recorre para se insinuar nos nossos comportamentos até ao ponto de considerarmos que agimos segundo a nossa vontade. Por vezes receio estar perto de interpretações perigosas, daquelas que invalidam o próprio conceito de liberdade. Mesmo assim tento perceber o que é essa coisa a que chamam amor com letra grande. Não são muitos os meios de que disponho e não é justo usar uma experiência tão reduzida para tirar conclusões genéricas. Há sempre a hipótese de o acaso nos ter solicitado com mais persistência para o lado errado da estatística. Tirando a experiência própria e as semi-verdades que vão circulando na boca do mundo, só resta a literatura. E sabemos como a literatura, a boa literatura, é quase sempre uma manobra de violento ajuste de contas com a realidade. É fácil perceber que não há campo de acção para uma teoria do amor com letra grande assente a experiências de carácter minimamente científico. Tudo o que podemos saber passa por intuições reformadas por desejos. O nosso carácter está incapacitado para ler os resultados do amor com letra grande de forma isenta. Mesmo perante a prova mais testemunhada sobra uma multidão de dúvidas, de suspeitas sobre os efeitos laterais, de desconfianças perante o método e a forma. Tudo serve para retirar credibilidade ao que se diz ou se pensa sobre o amor com letra grande. No efeito mais simples, amor com letra grande seria o acaso de duas personagens, A e B, terem uma relação de carácter binário em que se pode afirmar, durante um intervalo de tempo T, que A ama B e B ama A. No projecto romântico o tempo T não é determinado à partida e considera-se indiferente ou infinito conforme a palavra que ocorra primeiro. Na perspectiva do estudioso, mesmo que o tempo T seja muito pequeno, a circunstância de a relação AB ser equivalente a BA é de uma improbabilidade que desafia a imaginação. E, ao contrário do que se poderia esperar, esta improbabilidade é potenciada pelos mecanismos da propaganda que dão a A e a B uma multidão de abstracções pretensamente aglutinadoras que mais não fazem que eliminar as poucas hipóteses que A e B têm de se relacionar.
Wednesday
Tuesday
Percebe-se que há lugares onde deveríamos estar e não estamos e, por consequência, lugares onde estamos e não deveríamos estar. Esse desencontro, que à sua maneira deduz uma simetria, torna-se uma espécie de regra da existência quando já não sabemos como comunicar. Por uma lado porque o lugar onde estamos é, para nós que estamos, um lugar banal, enquanto para os outros, que esperavam que não estivéssemos neste lugar, tem a aparência de um lugar especial. Por outro, porque os lugares onde deveríamos estar não temos a certeza de nos quererem lá. Quando se torna obscuro o desejo do outro, quando não se chega a dizer com receio de não dizer o que se espera que se diga, quando as palavras que se dizem transportam sinais de agressividade, e tudo com a melhor das boas intenções se diz para não magoar, a comunicação é cortada e os lugares onde estamos deixam de ter valor e significado. Parece fácil quebrar este enredo falando simplesmente a verdade. Mas a verdade anda demasiado longe das bocas e dos ouvidos e, à conta disso, o que se ouve não é o que se diz mas a expectativa do que há para ouvir adicionada do desejo de receber sempre o pior. Nada disto parece normal mas tudo isto é comum. E eu sei do que falo por já ter estado nos dois lados desta estranha sebe. Espera-se, com paciência, que o tempo reconstrua o que foi destruído ou que, na sua feroz imparcialidade, continue a reduzir a escombros o que ainda resta. É estranho como a erosão parece ser o único factor constante. A entropia. Amparar os desejos ao absurdo e sobre eles construir planos de planos. Talvez seja sofrer o objectivo.
Friday
Nem todos os caminhos vão dar a Roma. Há circuitos fechados que não passam por Roma nem por perto de Roma. Mesmo numa perspectiva elementar, que admitisse Roma como o centro do Universo, nem todos os caminhos lá iriam dar.
Mudaram muito as coisas desde a Antiguidade. A sucessão dos anos quebrou os caminhos e os destinos e pode mesmo acontecer que num futuro próximo nenhum caminho vá dar a Roma.
Isto é uma coisa que eu posso dizer quase sem que se note a emoção que provavelmente estou a ter enquanto o digo. Roma e Pavia não se fizeram num dia.
Não há coisa alguma a que se dê valor que se faça apenas num dia. E esse, bem vistas as coisas, pode ser o grande segredo da humanidade: às certezas e às incertezas há que dar um tempo medido em vidas humanas em vez de dias.
Não sendo de excluir essa hipótese de nenhum caminho ir dar a Roma, e tomando isso como um exemplo dos inúmeros caminhos que, de repente, deixam de existir, que, de repente, deixam de fazer sentido, percebe-se melhor, o que não quer dizer muito, que um dia, um mísero dia, não dê para construir nada para além de curtas ilusões.
Eu não sei o caminho para Roma. Nunca soube e também nunca tive necessidade de saber. Os caminhos que chegamos a saber nunca os esquecemos. Ficam gravados em profundidade e basta deixar os passos seguirem no seu automatismo de sobrevivência para encontrar sem artifícios o lugar de regresso.
Mas, enquanto isso, Roma, tal como Pavia, e tal como os caminhos que chegam a Roma e a Pavia, e que, como sabemos, não se fazem num dia, vão-se fazendo todos os dias e tornando-se outras coisas, outros caminhos, outras formas e outras metáforas. Há sempre um tempo a passar e a querer pôr mais um segundo no segundo anterior, indiferentes todos aos males que causam, às ilusões que criam, ao tédio que provocam.
Nunca fui a Roma. Nem em sonhos. E por isso não fui ver o Papa. Veio ele ver-me numa tarde inesperada. Essa tarde em que não fui a Roma, essa tarde que trouxe Roma a mim, porque a trouxe o Papa, dei-lhe a mão para subirmos a avenida de Liberdade. Não dei a mão a Roma nem ao Papa por que eu já me tinha afastado das agitadas águas sagradas mas ainda não sabia nadar o suficiente para chegar à praia e voar. Por isso dei-lhe a mão com o medo estranho e perturbante de quem dá a mão para segurar quem espera que segure a mão e tudo o que traz uma mão. Poderia lembrar-me hoje, como então, de como um caminho que não vai dar a Roma, nem passa perto de Roma, pode ser feito de mão dada a um desejo que não acontecerá.
Não foi nesse dia que vi os dois lados da questão. Nem sei se nesse dia vi algum lado. Sá mais tarde, revendo assustado os efeitos na pele, percebi que dar uma mão para subir a avenida da Liberdade pode ficar marcado a fogo.
O estado de repouso ou de movimento uniforme é alterado sempre que é aplicada uma força. Aplicada a força, perdi-me. Sim, foi aí que me perdi. Pelo menos hoje foi aí que me perdi. O primeiro dos caminhos para Roma foi pela avenida da Liberdade. Um caminho falhado por medo dos salteadores, das ofertas tentadoras que esperam das margens trocar trocos por carícias. Não foi por aí que pude chegar a Roma. Nada se faz num dia.