Saturday

Há momentos em que somos o outro. São momentos de glória. Mas há momentos em que somos ainda o outro que não é o outro. As meninges espremem-se e mesmo assim ninguém viu esse outro que não é o outro de que a custo ainda se lembram. São os momentos em que para os devidos efeitos não se é. De um ponto de vista moral só somos o que os outros disserem que somos e se não somos o suficiente para que digam alguma coisa então é porque não somos.

Suponho que é esse medo de não ser que leva a maioria a querer ser qualquer coisa, ainda que pouco ou nada recomendável. Por não haver nada menos recomendável do que não ser.

Há momentos em que somos o outro que não é o outro. Estamos do lado de lá da muralha e deixamos que isso seja uma marca mesmo que o objectivo seja não ter marca nem deixar marca na pacatez do caminho.

Vamos supor que eu era capaz de sair à rua e interessar-me pelo primeiro ser humano que o acaso me propusesse. Interessar-me haveria de querer dizer olhar para ele, falar com ele e ouvi-lo. Vamos supor que era isto que eu estava a pensar fazer para mim um momento de integração social. Vamos supor que eu considerava isto uma maneira de me relacionar e estar em comunhão, de me aproximar do outro que não é o outro que eu às vezes sou.

Este outro que a minha suposta suposição me propõe ser um enviado do acaso, sujeito portanto ao rigor do desinteresse, é tão abstracto como a minha imaginação. Porque em todo este acaso eu só estaria a ver a maneira de mostrar ao outro quem sou. E isso não tem interesse nenhum, nem para mim nem para o hipotético transeunte.

O acaso é outra coisa que para ser acaso não pode ser previsto nem na matéria pensante de estar à espera dele. Em tempos conheci uma pessoa, de quem gostei, que dizia ler na palavra transeunte a mais bela das palavras portuguesas. Lembro sempre disso quando a uso, quando me cruzo com ela nas minhas trajectórias lentas por trás da muralha.

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