Friday

Às vezes o que incomoda é a página em branco. Mas incomoda mais o coração em branco. Mesmo que o branco neste caso se queira ler negro, por falta de luz e de caminho. Tento procurar cantos escuros onde ficar face a face com o resto de sentimentos que ainda por aqui navega. Sem ruído, sem interferência da alegria cintilante do mundo. É bastante claro que não procuro nada construtivo. Assustam-me as coisas definitivas e a construção é, pelo menos em princípio, uma atitude que quer a permanência, a duração. Não falo porque não sei o que dizer. Não tenho razões nem argumentos, apenas sentimentos insustentáveis.

O caminho mais fácil é sentir-me doente. E o caminho menos doloroso é admitir que sou apenas mais um doente no meio de outros tantos. Mas nenhum caminho é consolador. Ainda assim vou seguindo pela vereda disponível tentando não dramatizar para além do suportável.

Num campo puramente hiperbólico poderia dizer que me aborrece não estar profundamente aborrecido. Como se o tempo e as experiências da vida me tivessem reduzido a capacidade de sentir a um ponto de semi-dormência, em que já não sou um líquido e ainda não sou um sólido. Incomoda-me não estar a sentir-me tão miseravelmente mal como me parece que deveria estar a sentir. E incomoda-me estar a sentir este incómodo incontornável, como se afinal eu só não sentisse todo o mal que sinto por não ser capaz de sentir exactamente o que sinto.

E tudo isto não passaria de uma incómoda página em branco se não se desse o caso de eu imaginar a minha saída do outro lado, esse outro lado onde ficou a minha parte boa, como uma desistência do pouco que tinha. Porque agora, enquanto ando por aqui a percorrer as linhas com letras ocasionais, percebo que aquela foi a derradeira oportunidade, mais não seja porque não tenho nem energia nem liberdade para sequer pensar em tentar de novo.

No comments: