Wednesday

Não é fácil recomeçar. Parece que os cálculos foram todos feitos para um determinado percurso e agora, iludido aquele, não restam forças para novas desilusões. Como se a trajectória dos sentimentos se medisse essencialmente pela bitola da normalidade, confundida com o padrão burguês. Um dia, com tempo, noutro espaço, hei-de repensar a questão da abstracção e de como ela desvia os caminhos para o sentido único da estatística.

A palavra recomeçar é triste. Envolve um conjunto de sinais que a determinam para lá do sentido mais regular: começar outra vez; um novo caminho em cima de uma memória; gestos que não serão os primeiros e terão o peso da repetição; tudo a parecer uma tentativa de esquecer; a pele, o corpo todo, a inteligência, dominados pela praga da comparação.

Recomeçar é uma coisa que vem depois de já se ter tentado, de já se ter estado próximo do lugar certo, ou na direcção que prometia levar ao tal lugar. Recomeçar está depois de falhar, depois de desistir, depois de tentar, depois de querer. Não é fácil recomeçar.

Ah, mas por outro lado, se abandonarmos a retórica do queixume, se olharmos para a vida a partir de dentro, livres da abstracção e integrados na correnteza dos factos, o recomeço aparece como o único padrão que dá alento a ser. Depois de recomeçar pode tornar-se claro que se poderá recomeçar sempre. Procede-se como se um novo começo fosse parte da natureza dos ciclos. Torna-se parte da solução e não problema, mesmo que angustie e pareça inútil.

Não é fácil recomeçar todas as vezes que se recomeça. Sob o desvio do olhar, como se não se visse, está na sombra outro começo promissor. Revela-se nos olhos a repetição da tentativa, o cansaço rebuscado envolto em lugares que agora são comuns. Passo a passo o recomeço pode tornar-se o método. Outro dia, outro começo, outra tentativa. Nova corrida, nova viagem, nova perda que não se ganha.

Não consigo sair dos caminho da abstracção. A escrita que é escrita e no momento em que é escrita, torna-se um caso prático e real. Mas todo o conteúdo, tudo aquilo sobre que se escreve ou se fala, esse referente anónimo ou nomeado pela insistência, é um objecto abstracto, retirado da existência para o campo da média e do desvio padrão. Ao dizer, mesmo querendo que o que digo seja tão factual quanto possível, e convencido que estou que não quero, pego em modelos do meu sonho ou do meu pesadelo e passo-os para a existência quase prática das palavras.

Recomeçar é uma abstracção. O começo, lá atrás quando se começou, era uma verdade, foi uma verdade, existiu. Agora, ao recomeçar, ao tentar recomeçar, ao recomeçar a tentar, falo do referente que já não é o que refiro mas as palavras que dizem deste recomeço a verdade, apenas porque houve um começo em que as palavras não eram ainda precisas.

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